Sentidos In-versos

Conduzido por sensações parei. Parei para pensar no que sentia. Senti que parei. Deixei de sentir...

terça-feira, novembro 23, 2010

Sou comprimido, consumido sem prescrição entre desconhecidos, atento a opiniões enevoadas algures do lado de fora do frasco...
a poça, que piso, equaliza o ritmo do meu coração; as minhas botas são aquários com peixes laranja, outrora pétalas suspensas nas golas de camisas brancas; a gravata é trepadeira, hirta pelo sentimento, embrulhada ao ramo do carvalho que é forca expectante pela letra errada; calças são raízes que entrelaçam passado com presente tornando o futuro uma memória...
Contracção dos pulmões, humidificação excessiva dos globos oculares, ruborização da face, coração galopante, pernas trémulas, cabelo electrizante, dedos dilatantes, unhas erectas, pelos eriçados, braços desmaiados, testa franzida sobre o nariz franzino, lábios encerrados tais pontes levadiças prontas para erguerem uma palavra...
ou um beijo suspenso, atento ao barco que é língua húmida, cruzando oceanos profundos tais como sentimentos vendidos em embrulhos de jornal, quentes como castanhas de São Martinho, embriagados em jerupiga...
a levante, buscando tumidificar a razão, sensaboriando memórias retratadas em estátuas de sal, dispostas no passado, carpindo esperanças para as semear num cabo cruzado pela Lusitania...
do ubíquo retirei a invisibilidade outrora indivisivel e, sem o pudor da observação, cheirei, vi, toquei e senti, lambi e saboreei, dirimi-a no seu aspecto curvo, forma pairante suspensa no ponto final, aberto agora a reticências...
paixão sem oxigénio, vasos sanguíneos sem flor, sonho que é ácido vertido no diálogo, poema raso passado a ferro de engomar que é fogo aceso, palavras são labaredas, borrachas de reprodução, ausentando-as de ser...
elevando-as, por serem mais leves que a alma, a nuvens que são patamares de evolução moral, escondendo Prometeus das aves do Restelo, obliterando sorriso das crianças de um mundo pré-espacial, onde e quando pianos alados eram e música mensagem fora...

domingo, outubro 17, 2010

Isabel era uma criatura bicéfala, não porque ostentasse duas cabeças como o nome o sugere, mas porque tinha disturbio bipolar. De hiper sensível relativamente ao meio que a rodeava, facilmente passava a destrutiva com uma incontrolável sede por violência. Num desses estados menos apelativos socialmente, cravou os dente...s caninos numa professora quando tinha apenas 20 anos, e foi internada num... bordel.
Lá desaprendeu toda a moralidade imposta pela madrasta e o único ponto comum entre aprendizagem e desaprendizagem era a brutalidade como ambas lhe tinham sido impostas. Violência era duas faces de uma moeda que ela mantinha no bolso de um coração oprimido.
Apenas um dos clientes se mantinha fiel aos inconstantes assomos de Isabel, não por bizarria ou luxuria, mas por amor. Eduardo gastava o seu lacónico salário mensal no bordel, raramente envolvendo-se carnalmente com a fornecedora forçada de serviços, mas nada neste mundo o demoveria de tal comportamento.
às 17:30h Eduardo picava o ponto, retirava a bata, cujos bolsos pesavam balas de calibre 52 mm e seguia para casa às segundas, tinha aulas de braile às terças, encontrava-se com Isabel às quartas, às quintas praticava retenção da respiração num poço escondido num quintal abandonado e às sextas rezava na montanha pela alma da amada...
O acto de rezar pesava em verdadeira crença, quando Eduardo pisava um degrau superior da pirâmide etária, quando o seu relógio biológico disparava o alarme que indicava que não era eterno, quando Isabel levava uma vida que enfunava qualquer manual sagrado...
Ajoelhar-se era actividade referida no diário, repetida em cada página, sem jejum. Um deus limpo, sem mácula, descrito complexamente no guião divino elaborado por mentores iluminados, em perfeita dessincronizaçao com o deus em que Isabel acreditava e que visualizava nos seus labirintos existenciais. Era o minotauro da cognição que, ao invés de a ajudar, criava-lhe obstáculos intransponíveis...
O relógio de parede, barulhento de 60 em 60 minutos, gemia 6 vezes. Eram 6 horas da manhã e Isabel recortava modelos de várias revistas de moda esventradas no chão frio do quarto que partilhava com Emille Sardonette, uma devota prostituta de coração.
Eduardo levitava. Nublava a voz, tornando-a roca, à medida que a mente estendia asas e elevava-se transpondo o tecto do autocarro que transportava o corpo a casa. Sentia o ventre apertado, os pulmões comprimidos derivados da vertigem, mas era o sentimento que tornava real, que o tornava irreal. Conseguia ver a luz esbater nas copas, nos troncos, nos semaforos, nas casas, nos humanos distantes. A separação com o social tornava-o mais humano.
Acima das nuvens, girava lentamente, ao sabor do uivo de um vento frio que enrijecia a pele e a alma. Mantinha-se ali, suspenso, a enriquecer, a fortalecer-se para o combate diário 1000 metros mais abaixo.
Uma campainha pavlovliana impunha a sua presença e Eduardo abandonava o autocarro, caminhava por entre predios negros que descaívam quase roçando o seu escalpe, gaivotas que pousavam em alguidares que boiavam nas aguas de Tir, transeuntes cinzentos e hienas que atacavam crianças abandonadas.
E, numa das noites de qiunta, mentalmente equipado para suster a respiração no poço, encontrou Isabel, fora de 4 paredes. Reteve instintivamente a respiração e manteve-a, pulsando as orelhas, durante o tempo suficiente para Isabel atravessar a rua, ignorando a sua presença do lado oposto, apanhar a mala que havia deixado cair, comprar meia dúzia de castanhas, desmembrar uma e mastigá-la calmamente, e tocar com a ponta do pé direito o parapeito do passeio.
Não ousou revelar-se a Isabel, mas a inoperância em reagir trouxe-a tão próxima que seria impossível evitar a interacção. Sentimentos esbugalhados foram os que Eduardo projectou, atiçando a dualidade de critérios que só uma duplicidade de personalidade poderiam demonstrar. O monólogo dialoguisado era o retirar de pétala a pétala da flor da paixão. Amo-o, Não o amo, Amo-o, Não o amo, Eduardo é uma boa pessoa que te ama, Larga esse tipo...
O que define a minha escrita é a forma de me mostrar ao mundo...completamente tapado!
São penas coladas pela ambição que me fazem voar, tocar o cume do céu e rasgá-lo ao meio, dobrá-lo em dois, redobrá-lo por várias vezes para criar um cisne azul que boia numa galáxia que é lago sem fundo...
Kites pontuam o ceu dando sentido as historias que os velhos procuram em memorias apagadas pelo sofrimento...Os cordeis sao feitos de curiosidade que os miudos manipulam de faces atentas ao divino, procurando elevar sentimentos...Vento e redencao que nao sopra e sol e verdade que nao ilumina num crocodilo que mais uma vez devora um povo...
Foi o violino cuja flatulencia aterrorizou o J. e o fez saltar de um telhado ondulado por telhas laranja. Saltou de cabeca para baixo e aterrou como um persa, de garras vincadas no galho mais baixo da arvore antipoda da outra que nascera no deserto onde o alibaba se deleitava junto a um riacho de ouro. Tanto o paraboli...zado como o alibaba tinham algo em comum...nao serem reais!
Mas isso pouco os abalava. Enquanto criancas eram gozados pelos imberbes, alguns de cariz homunculal, outros de imaturidade exacerbada que se colava a pele e nao envelhecia e mesmo pelos adultos, cuja idade tecnica superior a 18 anos nao fazia juz aos seus comportamentos.
Gritavam-lhes nomes, tais como "ser irreal", "es uma fabula" e outros horrendos substantivos ou adjectivos que coleccionavam na parte do cerebro denominada de odiarberelo.
Se o narrador nao se identificasse com tais soberbas juvenis, dificilmente conseguiria documentar os insultos a flor da pele. Mas este, o que redige as palavras que tu agora les, era tambem um preterido social, devido ao exagerado recurso a poderes especiais que a mae natureza lhe atribuira...
A vida plagia os sentimentos da pior maneira possivel, revelando um paralelismo perfeito...e é nessa perfeição que reside a não tangência, basilar lógico da maximização da existência humana...somos nós umas pretuberâncias, curvas sujas pela vivência social, tentando contentarmo-nos com os Pareto, os second bests que a vida, a falsa plagiadora, nos oferece...
Puxo os cabelos do sol e crio novelos que são planetas...calco o universo com dedos de criança e produzo vermes intemporais que me engolem num big bang de conhecimento infinito, traçado num círculo que espiraliza até se diluir no nada...e lá, algures perdido, à procura de algo, encontro a verdadeira essência da vida...

sexta-feira, agosto 13, 2010

Ondula essa voz como a varina agita ancas, carpindo os labios, colhidos pelo latino numa pega de caras que dura uma vida em pranto...sacode essa alma, ladeada pelo xaile negro, que enviuva a guitarra portuguesa...atiça esses corações, afogados no tejo, outrora vincando estradas maritimas...

segunda-feira, julho 19, 2010

Sou eu ou tu. Sentimento é paragem numa viagem deterministica. Razão é sentido e sabedoria velocidade e eu sou tu desprovido de ambos, não envelhecendo, não vivendo o futuro, preso a um constante presente, com medo de enfrentar o passado mascarado de eterno futuro...
Repudio o corpo e os membros de ideias dentro das fonteiras da racionalidade...que hajam acordos de Schengen para os subjectivismos e que a inteligência não se centre na cabeça, mas desça ao restante corpo e termine nas unhas dos pés...

É uma mancha, essa no teu casaco que prolifera até ao braço, antebraço, onde uma peninsula de tecido se dilui em pele humana rasgada, também esta, pela fúria de uma prosa escrita em água salgada. A perna é coto que culmina em pé torto, não permitindo às palavras caminharem a bom porto. Farol é entrelinha que mantém o queixo erguido e peito é coragem de um marinheiro cujo braço ergue uma nação...

Aplausos difusos, enevoados atraves de lentes garrafais, pendurados por maos grisalhas como os panos que acolhem os actores idosos...sao lamurias que instigam a facil analogia, estirpes domesticas de esteriotipos domesticados por anos de travessias linguisticas por aguas poluidas...limpemos o planeta....comecemos pelas palavras!!!!!!
Através de uma lente, amplio um suspiro, metamorfoseando-o em grito, perdendo expressão como um pequeno fogo consumido por um dossel de fumo que me ergue ao pedestal onde o sacerdote me aguarda...é o rito do anel no dedo certo quando o errado apontou a parceira no momento indevido...beijo-lhe o coração através de lábios de cera, derretendo em ociosos laivos de sensualidade, esperando o dia da sua partida com o lenço branco, sacudido sem a paz merecida...

segunda-feira, maio 03, 2010

Hoje sou eu que, vaso partido, já não me reponho na forma original...de Lavoisier apenas sobraram memórias de teorias perdidas em determinismos lavrados entre palmas de mãos sujas de terra quente...cuspo ao vento escárnios às entidades ausentes, omnipresentes nas consequências que me calcam os ombros...fraquejo, soçobro enterrando os braços em terra húmida e colhendo a semente de uma morte anunciada a dois...
Escrevi uma carta sem letras, porque da minha caneta sairam apenas fantasmas, odios apaixonados, paixoes utopicas que voam acima da esfera do real, pesadelos que apagaram as linhas das folhas e as deixaram brancas...
E’ a minha caneta muda que chora, e e’ a folha que a abraca sem saber o porque...

Tive que limpar o cerebro com a escova da indiferenca, limar a raiva com as entrelinhas, escritas entre sorrisos cumplices que me acaloravam a pele, em dias frios, aquecidos pela palavra, abraco de todos os sons que expelia em comunhao contigo...Para me manter vivo, mantive-te comigo, de maos cheias em cima do peito, para que do meu coracao nao se esvaisse o sentimento que me roubaste...roubei-te eu uma ideia que ja nao existia, e tu partiste, partiste-me o coracao, porque so assim podias ser livre...

Colhi memorias, cheirei-as, reguei-as, acariciei-lhes as petalas e conduzi-as onde a luz se apaga, porque estas crescem melhor em noites de lua gorda...

Com o peito dilacerado pela eterna escuridao, fugindo de uma folha que exige dialogo, caminho eu, rumo ao monologo mudo, surdo e cego com as maos cheias de ramos de memorias que vao perdendo as suas petalas…

terça-feira, janeiro 05, 2010

Fosses tu flor, seria eu vaso basso camuflado em terra, meio enterrado, meio perdido, escondido da observação de nome sentimento, ilustrando a vida com balões de vozes surdas, especado à porta da memória com receio de entrar, tímido entre os meus, ignorado entre os demais, banido do horizonte pela não existência, aprisionado à minha inércia, livre apenas na morte que evita o meu olhar...
Com que forma de corpo recebes alguem que nao é ninguem para ti quando o teu proprio corpo ja nao reconheces? idade é arte que esculpe em carne, que eu desejava na arte do prazer...
Com que forma de corpo recebes o teu quando o espelho envergonhado apaga a tua imagem, como apagador de um quadro numa escola primária?

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Fios de palha ondulados pela brisa
que tortura a virilidade aguçada...
num Inverno escondido entre raios de sol...
São elas que se vergam...
ceifando maturidade num campo amarelo...

Os cestos saem pela moldura agreste...
em pinceladas largas...
carregados pelos braços, que são ampulhetas...
num tempo que não se esvai...
que se repete em cada gesto...

O céu é candeeiro, que aceso range...
tais cigarras, que acasalam uma nova manhã...
tão igual às que hão de vir...
E geada é verbo...é madrugar, renascer em branco...
ser virgem num parto difícil...

quinta-feira, agosto 16, 2007

Uma noite estava ela posicionada para desdizer o que havia sido dito antes. Desdisse e predisse que as palavras não proferidas seriam as saídas da minha boca...
Ruptura era aquela mão que a minha falta sentia. Olhar hoje mais não. Amanhã tampouco. Depois és tu, outra vez, sem vez por demais. Amor que salta ao eixo, fugindo de um queixo trémulo, sem carne encontrar. Platonismo é mesmo isso, compreender que os olhos comem para que a alma permaneça faminta. E mendigo sou eu, que suplica pela bússola partida.

Uma noite estava eu posicionado para repetir o que havia sido escrito antes. Ao lado o copo vazio, no outro o corpo intoxicado. Toquei acordes num instrumento de vácuo. A falsa timidez escondeu-me cada sentimento num saco. E ela lendo os meus ombros que encolhem com a indiferença, idade como primeiro nome, fugiu mantendo o corpo ali...estanque.
Exaurir é sugar o gosto de cada um, chamá-lo de insípido e perdê-lo num instante por uma eternidade. É rebaixarmo-nos, assentar desertas mãos nos joelhos nus e esperar que o amor nos calque as costas, nos vergue ao miserável nunca.

segunda-feira, agosto 13, 2007

Tão próximo. Toco-lhe. Esvai-se entre dedos rígidos. Desaparece. Reaparece cheia. Vazia de intenção. Cubro-lhe as costas de um peito de vácuo. Ao par de uma das mãos junto o ímpar do meu desejo. Desejo-o. Desejo-a. As asas quebram. Cai. Rasteja pela morte. Eleva-se num dos superlativos do estereotipo de divino. As nuvens são anjos que a choram. Eu derramo lágrimas que são anjos virgens, perdidos nos meus sentimentos. Sinto que perco. Ganho alento para perder novamente. Toco o chão como se fosse céu. Céu é chão pintado de sonho. E, por isso, durmo.

terça-feira, julho 17, 2007

Cosi a minha alma com a tua...
pontos sem cruz, trilhando os pudores da entrega
sem o remorso do tabu...
vesti-te com a minha pele encharcada no teu fulgor...
insuflando pulmões de desejo e ruborizando a lividez de uma morte anunciada...
morro eu ou tu...
mas não a relação que aceso me manteve...
Cacei a nossa sobrevivência, na ilusão que a ilusão dos outros era...
real éramos nós...
num sonho sonhado em conjunto por almas cosidas a dois...

quinta-feira, julho 05, 2007

Estou aqui sentado partido em dois ou três ou...inteiro, mas em pé parti, e sempre sentado...
deslocado, colocado mal a palavra foi proferida...em mim...
sofri nesta pele branda o som anichado em dois dos ouvidos, que em stereo chafurdaram nas minhas entranhas...
a auto estrada de sensibilidade fez-me rural, isolando-me entre florestas embrutecidas...
que abracei para amar eternamente a sobrevivência...mesmo morto...e eternamente sentado...
Cacos são bocados, que colados formam o todo...Eu, caco já não sou, porque de mim se perdeu o todo...sou o ausente frémito do espectro de uma existência a quem chamam 'eu'...
quando 'eu' sou o 'tu' ou o 'ele' desalojo-me e procuro o 'outro'...ou assumo o 'ninguém', porque o nome é maior e assenta-me melhor...e digo e repito que do menos o mal e que do pouco, esquecido no muito, se forma novamente o todo...sentado, em pé...morto...vivo...tanto faz, desde que o 'eu' se perda no 'ninguém'...

segunda-feira, junho 18, 2007

...tropeçava pela centésima vez. Esta hipérbole servia o interesse de realçar o cansaço que era levantar-se cada vez que a carcaça envelhecida, sinónimo de corpo, se prostrava no chão humedecido. A idade dele não era real. Tinha ultrapassado a sua noção de tempo de tal forma que, se lhe perguntassem o quão velho ele era, a resposta era dada em forma de reticências...
O saco de pano gasto, que o velho (chamemos-lhe assim, já que os nomes são para os géneros) arrastava, continha o seu passado, presente e, mais importante, o que restaria do seu futuro. O peso era, obviamente, heterogéneo. O passado puxava o saco para trás, o presente para baixo e o futuro...esse era leve e, se dependesse dele, ergueria o velho e transportá-lo-ia tal zepelin levado pelo vento.
Tropeçou novamente. Só que desta vez a queda assumiu contornos deintescos. Largou o saco, bateu com a cabeça e a amnésia levou-lhe o passado. O presente turvava, tal neblina, e o que se haveria de seguir não era afoito suficiente para se por a adivinhar.
Sentiu-se levar pelo vento, arrebatado tal folha velha expelida pela árvore da vida. Foi usurpado na forma, fundido no desejo.
Hoje o vento é velho e o velho é vento...

quinta-feira, junho 07, 2007

E, foi assim, que um dia parti para o nunca...
pisando cacos de uma luz apagada...
tacteando; puxando os fios suspensos num céu ausente...
com a esperança de me acender em fogo...de ser o sol, centrado em mim...
voyeur protegido das vidas de mimos gestos genealógicos, cópias perfeitas de ritos inquestionáveis...
com a esperança de atrasar a decifração de um sentimento, remetido, por carta, à exclamação erigida à sombra de uma interrogação por colorir...
E, aos números que assinalam as cores correctas, converti-os em sons...pintei bocejares aos atentos, e atenções desmedidas aos apáticos...
fechei o infantil livro da vida real e folheei o diário do morto...daquele que viveu e nunca se repetiu...
e hoje, perdido no nunca, aplaudo o ausente...único realmente presente...

terça-feira, dezembro 26, 2006

Se naquele verso fui feliz, quero reescrevê-lo...
quero que essa passagem seja a introdução de cada dia do meu diário...
Se naquela música fui feliz, quero voltar a escutá-la...
quero poder manobrar a faixa da vida e manter a melodia...
Se ao contemplar aquele quadro fui feliz, quero fazer parte dele...
quero penetrar nas entranhas de óleos de cores familiares e imortalizar-me entre as pinceladas do destino...
Se naquela estação fui feliz, quero poder manobrar a calvicie das arvores...
quero mediar a temperatura do ar, quero inspirar nuvens e soprar a chuva...
Se naquela praia fui feliz, quero construir a minha casa à beira-mar...
quero escutar as marés e cheirar a sal...
Se naquele corpo fui feliz, quero manter o espelho igual à fotografia da minha memória...
quero copiar o sorriso, os gestos e as palavras dessa imagem...
Se naquela falta de lúcidez fui feliz, quero ser louco...
despir-me de bom senso e caminhar nu entre esgares de semelhantes...
desatentos aos seus momentos de felicidade...
Isto de sentir tem que se lhe diga...
Dá aroma à vida e odor à morte...
Transforma-me numa lebre que corre sem rumo,
Fugindo do rugir do inevitável...
Daquele que se esconde à porta...numa qualquer porta...
E eu, embrulhado no sonho que partilho contigo...
Num qualquer daltonismo expressivo...
Tento construir o puzzle do arco-iris, alinhando-o com o olfacto...

Isto de sentir cria fé no céptico...
Fazendo crer que à noite se edificam as reais vidas que o dia subverte...
e a almofada, que suaviza o pensamento,
adiando o ponto final de uma prosa de fim adiável,
é o cofre dos imundos mundos agrilhoados à manhã seguinte...
E eu, a lebre assustada, corro sobre palavras soltas...
sobre palavras que me devorarão no momento em que o sol morrer...

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Esta minha imagem não sou eu...
o espelho mente-me...
ilude-me, traçando com o vapor as brumas das lembranças esquecidas...
o que vejo são partículas de cor, que derretem numa mescla de escuridão...
e o que vejo são mosaicos, que embrulham o quadro contemplado pelos seres sem rosto...sentimentos que escorrem na frieza do objecto usurpador da verdade, perdendo-se no ralo anestésico...
Esta imagem, que corgita o alimento da alma, é o rumor dos caminhos alegremente não percorridos...tristemente esboçados pela vontade...
e o espelho prende-me...
molda os meus gestos, guia-me os membros e usurpa-me a vontade...
controla-me, gerindo os meus movimentos com os cordeis da resignação...
o que vejo são as imagens por ele projectadas...numa eterna mas falsa felicidade...
e o que vejo é a moldura, de um quadro inacabado, escrever numa exclamação as reticências da minha existência...

sexta-feira, setembro 15, 2006

lambo o vapor que transpira da forma disforme que me chupa a pele, que me descobre a vergonha...
e espero os comboios que traçam linhas em solos vermelhos de sangue...
atento aos viciados na vida que as inalam e gritam pragas de gafanhotos expelidas de poços sem luz...
viajo entre flashes fotográficos por espaços indefinidos, olhando através de janelas que me desvendam coreografias de rupturas passadas...
até que a alma de uma escada perdida me localize a estação invisivel...
o destino presenteado no palco dourado, adornado pelo odor de uma ode de dor...

domingo, setembro 10, 2006

Humedecida a pena com o pesar do autor...
que amontoa palavras do desconforto que é amar sem ser amado...
como se tal fosse uma obrigação do escravo poeta...
daquele que carrega o pecado da paixão da humanidade nas costas vergadas pela responsabilidade...

E é ele...o falso poeta...que observa aquela forma feminina...a quem ele chama mulher...
E é ela...o monstro, um conjunto de retalhos platonicos e imagens de memorias carcumidas pelo esquecimento...que se eleva lentamente ao pedestal do poema malogrado...

Ele, aliciado por meretrizes frases que lhe concedem a vontade a troco do engano,
esboça o último sorriso, antes que a pena pese demais e continue a descrever o quão desconfortável é amar sem ser amado...
Este sou eu...o ser perdido, montado na sela do unicornio vendado...
Aquele que gira sobre os átomos do vazio...escondido nos limbos da morte, cujas paredes invisiveis encobrem o meu caminho...

Este sou eu...vagueando nos labirintos das outras vidas...
negligenciando as respostas dadas a perguntas que não ousarei colocar...
e desenhando aqueles falsos sorrisos sobre vultos negros...cuja real expressão aguça o esquecimento...

Este sou eu...o ser perdido,aquele que apaga memorias de genes, que me traçam deterministicamente os passos que nunca darei...
Sou eu...aquele que lava a vergonha com o sabão do remorso...que esfrega a sujidade do tecido da vida...que chora sem saber o porquê...nem porque me escondo...

Este sou eu...o que atenta, a medo, para a forma como as sombras me rasgam a pele e me descobrem as entranhas...e, mesmo molhado pela chuva da verdade, se esconde e desdenha de uma nova oportunidade...

sexta-feira, setembro 01, 2006

São as mãos dela que modelam aquelas construções de areia fina...
ornamentadas de raios de um coração quente, que se desenha num céu azul...
como o vestido que ornamenta a sua pele fresca...

São das suas mãos que pequenas janelas falam ao mundo...
que conchas se vestem de estrelas e voam...voam como os nossos sonhos...
tais pássaros amainados pela liberdade...

São das suas mãos que colunas se erguem, tocando nuvens expostas em círculo, formando colares, que adocicam tonalidades...
e a disposição dos búzios, tais escadas que nos enrolam os sentidos, segue o ritmo da serenidade...

E aqueles dedos compridos, cumpridores de melodias que calcam e constroem as portas livres, são o reflexo da graciosidade da paz...
e o seu sorriso aviva a cidade que a rodeia...
e o seu respirar é a brisa leve que me acorda...
que me faz sair do meu casulo...espreitar...e vê-la...enorme...esbelta...sorrindo...
sempre presente...moldando a minha vida...esculpindo a minha felicidade...

quinta-feira, julho 20, 2006

A fracção de uma bala, numa fracção de segundo, derruba o combatente...
condenado a outro mundo...
A repetição de um disparo assume o espiral de cumplicidade de ódio...
enquanto o tempo calca a campa com pés de culpa...isento de respeito...
Semeando ervas daninhas e vestindo a morte de falsa esperança...

As lágrimas secam e encolhem olhos que nada vêem...
camuflando o remorso com a demissão do sentimento...

A pele rasga, a teia genética quebra, e a aranha da vida recusa-se pensar numa descendência perdida...
e o que cresce são flores de pétalas de morte...
pintadas de fogo e desenhadas em tinta de ódio...
cravadas de balas de má sorte...

E assim se esboçam gerações sobre cadáveres de memória...
cultivados por vingança e que sangram a nossa história...

sexta-feira, junho 30, 2006

as sementes caiadas do branco virginal...tais vestidos, coroas dos ritos mortais...
são ornamentos de gerações, duplicadas em processos infindáveis, que ostentam aquela felicidade...o substantivo definido segundo paradigmas, que estigmam o desatento do sentimento...

e as flores, que minguam, já sem a pureza das pétalas que abraçam o futuro, são armas que atingem o espelho...que se reverberam e distraem o pensamento, escutando o eco do vazio em gemidos sem dor...são o aperto de corações partidos, a herança adquirida...distorções visiveis nos cacos de corações apáticos...é a morte após a vida, sem ciclos de esperança...é a esperança dilacerada pelas experiências vividas...é o deixar de sentir a claridade de um sol que já não nasce...

e as gotas de água, que multiplicam a existência, são os enganos que, entre esgares de escárnio, mantêm as espécies...são os sons do silêncio em noites de orquestra, que embalam as gerações numa eterna inércia...são as incubadoras, cujos ovos nunca estalam...e são as lentes que aumentam distâncias infinitas entre o 'eu' e a vida...

quarta-feira, maio 10, 2006

O instinto que preserva a espécie...
que nos faz reagir, lutar, sobreviver...
enquanto atolados na teia genetica dos antecessores mortais...
imortalizados pelos nossos gestos, palavras e acções...
como almas esquecidas do perene...
próximas do longínquo e daqueles céus virtuais, que se erguem na mente dos poderosos...
aquecidos pela fricção sexual dos corpetes intelectuais...
parindo e decepando estátuas ornamentais...
tais são os tristes homens, agrilhoados em corpos fúteis...
similares a cascas secas, que latejam em desespero pela libertação da mariposa...
cujas batidas das asas soltas, acumulam luz...verdade...e crueldade, no processo de ausentação deliberada do sentimento puro...
impuro na sua majestosidade...
e as suas batidas das asas soltas são como chicotes, que martirizam a intenção em detrimento da forma...
e reagem, lutam e sobrevivem para que a espécie preserve o instinto...

quinta-feira, maio 04, 2006

a velha enrola a sua vida na roca de nome memoria...
sentada na cadeira de balouço, embala a paciencia...
viuva da felicidade...vestida de eterna escuridao...

a velha, que perdoa os outros e a si mesma pelas decisões de si e dos outros,
perde o calor da palavra...
e a sensibilidade esvai-se entre as rugas moldadas em lagrimas...
como rochas que servem de esconderijo aos segredos...

a velha enrola pedaços de si, enquanto balouça na vida...
atenta à queda...atenta à morte...
o corpo diminuido pela vontade...
de costas vergadas pelo destino...
e de olhos cegos, mas de alma clarividente...

a velha que tanto amor poupou...e tristeza acumulou...
é consumida pelo esquecimento...enquanto a roca, de nome memoria, engorda...

quinta-feira, abril 06, 2006

Se eu um dia puder ter pernas de letras e mãos de sentimentos...
e caminhar poeticamente, tocando os outros com a minha essência...
Se eu um dia puder ter claves de sol como ouvidos e favas de mel como labios...
e sentir a melodia da voz de um semelhante não receoso em me escutar...
Se eu um dia guardar uma pena num boião de vidro, coberto de fragmentos de terra, vida e ansiedade...
e regá-la com as lágrimas de paixões, desejos e frustrações...
proclamando, com as trompetas da novidade, o renascimento de uma fénix...

Se eu um dia cobrir as valas emocionais com as memórias de momentos futuros...
e caminhar sobre tapetes temporais que transpiram novas lembranças...
Se eu um dia despir a pele e vestir-me de mar...
e puder cheirar a maresia e saber a sal...
Se eu um dia puder olhar de frente o sol...
e não me sentir intimidado pela verdade...

E se esse dia for o hoje....então quero que nunca acabe...

sexta-feira, outubro 21, 2005

Desenhei a cores de fogo no céu bafiento de tarde meia...
Pinceladas de ilusão...
Esperançado que o sonho caisse na minha longa teia...
ateei rastilhos de pinceis que se elevaram numa forte explosão...
artificios de luz e cor...
e muita confusão...

As vendas do sono tiraram-me a visão...
nove horas depois a lua pariu um sol...
e eu uma recordação...
que me prendeu a memória como um anzol...

Vi-a distintamente...
instintivamente...
ainda deitada...antes da partida lembrada...
e da palavra de adeus por ela soletrada...

a face iluminada...
espartilhada em telas...
que ela erguia na minha solidão...
era, pelos meus olhos, intimamente acariciada...

dobrei o desânimo em dois e e construí um avião...
deixei-me flutuar sem sabor...
até que o paladar me devolveu ambição...
o odor soprou a vertigem...
que se esvaiu pelas veias da minha perdição...

de olhos bem abertos, escondidos pelas pálpebras densas...
o sonho, de género masculino, ecoou no meu coração sinais de aterna feminilidade...
e as cores de fogo no céu bafiento de outra tarde meia...
eram a minha própria teia...

segunda-feira, setembro 05, 2005

há bocado, abri a jaula do sorriso...
deixei-o elevar-se e transformar-se na gargalhada,
que me prendeu o siso...
depois, acedi e prometi latir aos gatos e miar aos pombos...
falar aos cactos e regar os troncos...

há bocado, esculpi claves de luz que iluminaram a música...
soprei tons de longos vestidos de notas com as suas túnicas...
calcei acordes e deixei os atacadores soltos...
e deambulei de forma única...

há bocado, caminhei pela estrada de espuma das ondas...
segui entre tochas acesas...
e cantei às conchas...
depois espreitei as profundezas...
e dancei com algas e nadei com lontras...

há bocado, abri embalagens de desejos frescos...
matei a fome com pauzinhos chineses...
suspirando por vezes...
depois, meti os olhos na maquina de lavar...
deixei-os torcer e contorcer...
virar e revirar...
lavados, deixei-os pingar as imagens que tinha guardado...

há bocado, decidi escrever as palavras que tu lês...
hesitei uma vez...
bem, talvez duas ou três...
a verdade é que se estás aqui é porque as vês...

quinta-feira, agosto 25, 2005

soprei um balão e fiz uma prisão...
onde aprisionei os meus bolsos que tentavam fugir...
depois ofereci a cada cabelo uma casca de caracol e deixei-os viajar...
engoli uma pastilha elástica e fiz um balão que me levou a flutuar...
a brisa pediu-me emprestado os sapatos e eu o poder de dirigir o ar...

pouco depois, meio arrependido, voltei para libertar os tristes bolsos...
as suas lágrimas assumiam a forma de meias...
decidi oferecer estas às bolhas dos pés da brisa...
ao que ela me retribuiu com uma nuvem perfeitamente lisa...

na nuvem construí uma casa e na casa um jardim...
e concedi aos bolsos o mester da jardinagem...
e eu dediquei-me à caça...

As tempestades eram os únicos animais da savana circundante...
e, por isso, desmotivei-me..
desci ao cume do anapurna...
e vi o monge laranja a comer neve...
como não gostava da cor, pintei-lhe as vestes...

Continuei a descer e dialoguei com um bago de arroz...
à conversa juntou-se as bolhas da brisa...
convidei-os aos dois a conhecer o alibábá...
mas para tal necessitávamos de um tapete...

Ninguém tecia tão bem como a agulha espadaúda...
dirigimo-nos a ela e apesar da dificuldade...
ela nunca desistia de uma boa luta...

alguns dias e poucas noites depois o tapete estava pronto...
o tecido era de fruta...
voámos todos os quatro em busca da gruta...

Quando chegámos o popas veio-nos saudar...
o dumbo rodeou-nos curioso...
e até o feiticeiro de oz nos quis cumprimentar...
seguimos e bem à nossa frente...
a porta que se ergueu não nos queria deixar passar...

em coro cantámos...

abre-te sésamo...
e a porta abriu...
mas enquanto o fazia repondeu em unissono...

o interior é fel quando tens ódio...
o interior é mel quando tens amor...
o interior és tu quando tens pavor...

o bago de arroz retraiu-se...
as bolhas acobardaram-se...
e até a agulha hesitou...
quanto a mim...
entrei...sem pestanejar...
porque pior que pavor é medo sem sabor...

lá dentro estavam as meias...e em redor, o tesouro esculpido em folhas...
as cigarras tocavam e os meus cabelos soletravam as letras desta história...
desta história tecida em sonhos e pintada por tolos....

terça-feira, agosto 23, 2005

Não é que seja parco no sentir ou alegre na solidão...
mas hoje decidi vendar os pés e deixá-los ir...
deixei a mente assobiar na cúmplicidade perversa do caminhar...
e inalei palavras de liberdade escritas num arcanjo livre...
soprei velas de aniversários que não vivi...
e afaguei a alma com os paninhos quentes da ilusão tornada viva...
peguei na vassoura de nome esquecimento e limpei a memória...
cuspi ao ar o arrependimento...
e deixei a brisa lidar com o remorso...
abri a alma e retirei-lhe os espirais do intemporal congénito...
alisei moléculas e estendi sinapses ao sol...
conquistei a fotossintese e dei os dedos de conversa às plantas...
subi ao monte calvo e cultivei-lhe poesia...
li aos cactos expectante pelas pétalas cheias...
alterei as necessidades básicas e adicionei-lhes adjectivos...
comi pronomes e corgitei imperativos...
que dei aos pássaros de asas independentes...
finalmente limei as minhas asas e voei em busca de um verbo...
de uma palavra tão simples e perfeita...
como a palavra amar...

Não é que seja parco no sentir ou alegre na solidão...
mas hoje decidi consentir-me viver...

quinta-feira, agosto 11, 2005

conheci-te noite fiel...
enquanto empilhava as palavras, que a minha sede de sentidos trauteava...
enquanto as colava com vinho de sangue...
enquanto sangrava lágrimas escorridas entre as ruas da incerteza...
e foi nesse dia que te li os sentimentos embriagados...
e que soube o que virias a sentir com a ausência do ninguém...
e, então, aluguei à hora uma alma...
pagando-a com cada pulsação de vida...
cujos versos desritmados cansavam o tom de vulto...

conheci-te noite fiel...
e devolvi o corpo ao cabide do pó, lambendo os rastos húmidos da memória...
depois, colhi as sementes de paz, não lhes concedendo o tempo da maturidade...
e trepei as paredes sujas do futuro,
abandonando o chão fétido do passado, coberto pelo tapete da amnésia...

conheci-te noite fiel...
e cantei à lua cheia o vazio da minha voz...
atei as veias, usando-as como cordas, e trepei até ao cume da ilusão...
e bem lá no topo, bem perto de ti, aprisionado aos calabouços de morte, gritei bem alto...

conheço-te noite infiel...

terça-feira, julho 26, 2005

Se o dia de hoje contar o segredo, que ouviu do ontem, ao amanha
talvez este fique na duvida em ser aquilo que é...
ter os numeros da felicidade antes da taluda da vida existir é como ter a poção da vida eterna sem antes se ter vivido...
é como soprar sem se ter o balão...
como cantar sem som...
e como mostrar amor sem amar...

Se o dia de amanhã ambicionar ser o ontém
talvez o hoje seja o impasse concedido pelo saudosismo...
a inércia de um saber precipitado...
um ciclo terminado...
um antecipar de algo que passou...
algo que resultou...

Se o dia de ontém murmurou as palavras ao hoje
talvez o amanhã se arrependa de as ter escutado...
mas o ontém, absorto na felicidade, rega os outros de ansiedade...
dá-lhes a esperança de tranquilidade...
e afoga-os na ingenuidade...de que o dia se repete
de que o dia se funde num ontém, num hoje e num triste amanhã

domingo, maio 15, 2005

Pegadas

piso as pegadas, que tu traças no solo, acreditando que seguindo-as, rumo à terra de nome felicidade...
Vejo pequenas flores brancas, que brotam em redor dos teus pés...pequenos pássaros verdes que, cantando, marcam o ritmo do nosso caminhar...
folhas, que se precipitam de bem alto, renunciando à longevidade, na ânsia de um vislumbre de ti, de um vislumbre de eterna cumplicidade...

Sigo-te na vontade, cego em amor, iluminado em esperança...
Na esperança que, um dia, o horizonte me presenteie a mesma visão que o meu sorriso adivinha...
E, antecipando o momento com a satisfação da resignação da marcha, respiro uma total confiança...

Os meus olhos fechados imaginam edificios erigidos sobre um coração firme, cidades em harmonia, cimentadas em sentimentos de paz e em sonhos pintados em telas tridimensionais...
E as tintas caleidoscópicas, que vão preenchendo as lacunas da incerteza, constroem as cores do nosso futuro...
Esboçam, através da luz do nosso mútuo sentimento, a casa da nossa relação...
Esboçam as janelas, as paredes e os sempre abertos portais...

Porque a felicidade alicerça-se na esperança, algures na terra da felicidade, pintada em cores de sonho e de eterno pensamento de um amanhã a dois...

sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Salvo erro...

Por amor do Superior que, omnipresentemente, está também no Inferior...
Por amor da verdade, salvo o erro com a bóia da passividade...
Por amor ao amor, desprimo a verdadeira realidade...

Por amor aos outros, abraço as palavras ocas...
Por amor à companhia, aceito as ideias vãs...
Por amor a ela, grito as disconexas rimas loucas...
Por amor aos loucos, imagino-os doutos de batinas sãs...

Por amor à vida, recuso-me a pronunciar morte...
Por amor aos mortos, deixo-os viver para além da vida...
Por amor à memória, esqueço-me dos momentos de má sorte...
Por amor ao destino, entrego a minha mão para ser lida...

Por amor à escrita, ignoro os sentimentos puros...
Por amor à ignorância, salvo eu, este erro da filosofia...
Por amor à sanidade, ergo finalmente barreiras e muros...
Por amor a mim, não posso deixar de escrever a minha poesia...

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

A raiva contida constrói dois mundos e um outro, que giram sobre um sentimento apaziguador, que inspira a paz utópica de uma tartaruga mítica, que suporta uma galáxia...
E uma emissão de alegria contagia os 100 anos luz que distinguem as cores de dois quartos incomuns, num sistema universal...mas a frequência oscila entre as ondas do mar revolto, que procura a destruição contra as rochas da terra do velho Lavoisier...e perde-se no fumo da comunicação, que se recicla em intermináveis chuvas de esperança, que alimentam as folhas dos livros que o rapaz, algures no cosmos ainda aceso, lê...
E lê sobre vermes intemporais que engolem a memória e o esquecimento, e lê sobre heróis que superam o espaço e o tempo, sobre estrelas que viajam e partilham o tempo...E sobre o que o rodeia, romantizado pelo mítico substantivo de nome 'mentira'...que se ergue primeiro do que a palavra, e antes do verbo...que surge sem bater à porta da humanidade...que invade o nosso espaço e tempo...e que faz com que o pequeno rapaz aprenda a odiar...e a sua raiva contida constrói dois mundos e um outro, que giram sobre um sentimento apaziguador, que inspira a paz utópica de uma tartaruga mítica, que suporta uma galáxia...

sexta-feira, janeiro 28, 2005

Hoje acariciei a resignação...
mas foi uma daquelas carícias a apelar ao desprendimento final de amantes, que sabem não poder amar mais...mas não sentem não sentir mais...
Sorri de costas...

A estátua do anjo sem cabeça continuava no púlpito da verdade...
e as palavras que se ouviam eram beliscões que me intimidavam a pele...
Caminhei sem pés, apenas com as ideias do adeus...

Os eunucos, esses, tocavam trompetas e eu ansiava ser herói do sentimento...pelo menos por um momento...
O anjo finalmente elevava-se sem vontade, temendo a própria liberdade...

E a curiosidade da expressão da reacção encorpava o frémito do medo...sentimento partilhado pelo mensageiro de mau aúgurio...partilha infeliz acalorada com a tristeza comum...

O caminhar em pensamentos foi interrompido pelo iluminar de um busto indefinido, por um sorriso esboçado num tecto de abóbodas sem fim e por um olhar intemporal...o olhar de musa que escreve pelas mãos de homens tristes e cúmplices...de homens como eu...

Acompanhei o voo consumido em luz, enquanto a lágrima, do fim avizinhado, derramava na lentidão da esperança...na esperança de redenção, de salvação e de reinício...
E, assim, provei o seu sabor...sabor de escuridão insalubre que é o meu futuro...

O púlpito jaz escrito palavras de um dono ausente...de uma alma presente nas mãos de homens tristes e cúmplices...

segunda-feira, janeiro 10, 2005

Hesitação

A criatura caminhava por ruas pejadas de pétalas de flores. O aroma do ar era tão denso e agradável que ele conseguia seguir o trajecto mesmo de olhos fechados.
Caminhou durante anos e anos, sem cessar. Caminhou até que um dia, sem que nada o indiciasse, o odor se refreou. O caminho era agora, aqui e ali, despido, de forma a que se conseguia avistar terra suja.
A criatura hesitou e, pela primeira vez, parou.
Não sabia o que fazer e chorou.
As suas lágrimas elevavam-se, voavam e formavam pequenas poças de tristeza no ar.
E ele olhava em frente e via apenas terra.
Pôs-se em bicos dos pés e tentou ver mais longe...mas não conseguia, porque mais além o que via era apenas o prolongamento do monte que voltava a descer na ignorância dos olhos da criatura...
E sentou-se e criou mentalmente cenários possíveis e impossíveis de mundos impossíveis e possíveis e ficou...e ficou durante anos e anos a pensar...sentado...
Até que um dia, levantou-se e voltou para trás...e, à medida que caminhava, o odor começou a intensificar-se gradualmente...mas tudo era confuso na mente da criatura...
Já não estava habituado ao odor forte de um ar que já não era o dele...
Hesitou novamente, por breves momentos...
E cansou-se de hesitar e parar...
Repetiu os passos de anos anteriores até atingir novamente o ponto onde a terra engolia as pétalas...
Refreou a velocidade do seu passo ligeiramente, consumindo a coragem dos passos que estariam para vir...e caminhou...cheirou a terra...cheirou a vida...e a curiosidade do que estava para além do monte foi sendo combatida com o desvendar dos mundos agora possíveis...antes impossíveis pela hesitação...

quinta-feira, novembro 25, 2004

A derradeira lágrima percorre a face gélida de uma pele absorta em entender a morte...

Doi a vontade...doem audivelmente as pálpebras que se emaranham nas pestanas e que marcam com nós a escuridão face a este mundo...
A vontade de relatar imagens do intemporal passa em fracções de segundo e multiplica-se em combinações de intenções que desenham um céu de constelações aparentemente mudas...e as crianças contemplam-nas entre lentes...entre lentes, que destacam esse mesmo olho, que um dia...que um dia, de forma ciclica, revelam o quão perene a morte é...

E a lágrima precipita-se num chão devorador de carne...de um solo que ousa dominar o esquecimento, semeando aqui e ali as lacunas da memória...
Mas o céu, impondo a sua vontade, apela à lágrima para se eternizar e ser derramada continuamente em momentos de pranto e dor...e, relendo incessantemente as mesma histórias, espera que um dia, talvez, consiga ler as linhas de vida e de morte, em que essa mesma lágrima seja derramada em momentos de felicidade e amor...

segunda-feira, novembro 08, 2004

Palavras

As palavras, que escreveram a minha essência, correm hoje lá fora...
Lestas em esquivar-se dos pontos finais, continuam a deslizar nas reticências da expressão dos meus olhos...
Ultrapassam-me...
Riem-se da minha excessiva lentidão de reflexão...
Dominam os meus pensamentos...
Gozam e descrevem as minhas acções...

As palavras, que me controlam a vontade, escrevem o tempo e o espaço, reflectido no meu querer...
Criam-me o desejo, a ansiedade, o poder e o não ter...
Cosem-me a alma com a linha do sentido da vida...
com a mesma linha ténue, que sadicamente se desenha nas palmas das minhas mãos...
A mesma linha, que me recorda a finitude de uma vida e a infinitude de uma palavra...

sábado, outubro 30, 2004

Traçar futuros
Não sou mais do que a breve sombra esquecida pelo amanhã, a imagem consumida pela amálgama de indecisões presentes e o reflexo distorcido de tardes soalheiras passadas...
Se uma sombra pudesse ter a forma de uma estrela nem assim eu hesitaria em a trocar por qualquer forma disforme presenteada pelos passados luminosos cujos sorrisos nunca se mostraram preguiçosos...
Mas o presente não se esboça em estrela, o passado não ilumina a minha mente, nem o sorriso alguma vez revelou a árdua tarefa de traçar o rosto...
E, assim, num presente a recear um futuro, um passado seria sempre uma benção da memória ilusória...de uma memória encarregue de desenhar vidas iluminadas, escritas sobre palavras reais, enobrecidas pelo irreal da esperança...

segunda-feira, outubro 25, 2004

Como pintar uma tela sem tinta? como tecer um bordado sem linha? como viver sem vida???

A moldura da raça humana é o corpo fútil que apodrece...os genes da imortalidade riem-se da casca seca e ignobil que cobre o corpo inútil e revigoram no tempo em gargalhadas intemporais...
O engodo do infinito traçado em linhas de vida engana o mortal que, morrendo, conhece o lado jocoso do conhecimento...e, algures perdido em limbicos e labirinticos corredores, alguém, que não interessa quem, calca o nada, supenso no espaço limitado pela vida e pela morte...

O nada, que se entretém a escrever as memórias em tinta amnésica, lida com a razoabilidade do infinito de sentimento anestesiando-o com a simples não-existência...

E, no dia em que o alguém, que não interessa quem, evaporou e foi engolido pela nuvem mais negra do esquecimento esperado, senti-me pesado pelo remorso...e, ao mesmo tempo, leve da responsabilidade de tentar perceber....de tentar tecer um bordado, de pintar uma tela, de viver...

quarta-feira, outubro 13, 2004

O caracol de casca metalica aparentava querer ostentar as antenas, que lhe permitiam a tal emissão dos sitcoms ingleses, que ele adorava. Passeava-se pelo campo de golfe, expelindo um ou outro grunhido seco. Erguia, com o auxilio de uma qualquer geringonça metalica, um livro aberto iluminado por uma pequena lâmpada fluorescente. Lá conseguia-se ler as seguintes palavras meio sumidas:

O baton que pinta o berro...
As palavras pesadas em balanças viciadas...
os gestos ponderados por manuais equilibrados...

E quando o castor o interrompia com as boas noites do costume, ele retorquia quase num esgar de palavras a roçar o rude, porque tinha noção que aquele castor adorava os dedos todos de conversa que lhe pudessem fornecer. E ele não tinha tempo. Tinha que finalizar o poema e posteriormente tinha o sarau da sitcom favorita. A luz intensa que a casca permitia descobrir, pelas imperfeições da liga de metal, desenhavam pequenos circulos nas poças de água exteriores. E essas poças, por vezes, quando o caracol parava para conceder toda a sua atenção à sua pequena televisão eram autênticas telas que atraiam os vários animais que viviam nas copas das árvores limitrofes. Esquilos, pardais e outros pequenos seres juntavam-se, abraçando-se uns aos outros em noites frias, e assistiam aos mesmos programas que o velho caracol.

O caracol vivia no caule do malmequer número 34, 3ºandar. Aliás, o facto de ter sido um dos primeiros a ocupar o malmequer permitiu-lhe ter acesso ao 3 andar por inteiro. Este malmequer era diferente de todos os restantes malmequeres do jardim. Isto porque crescia haviam 50 anos sem cessar. Todos os anos algum cientista vinha a correr com mais uma teoria esboçada em papeis soltos e sujos de café e gritava esbaforido: posso finalmente provar cientificamente que este é o último ano em que vamos assistir ao crescimento físico deste malmequer. Mas todos os anos o malmequer voltava a enganar a ciência limitada destes seres.

O caracol, cujo nome era Abdul devido ao facto de ser descendente de caracois muçulmanos, aproximava-se lentamente do malmequer. Pretendia ver o episódio 24 de Seinfeld no conforto da sua casa. Muitos questionavam-lhe (incluindo o próprio leitor) o facto de este precisar realmente de uma segunda casa, já que parecia óbvio que quem tem uma carapaça como a que ele ostantava podia bem sobreviver sem a casa do malmequer. Ele detestava responder a esta questão até porque a única explicação associada a isso tinha a ver com o desvendar do seu hobby preferido e ele não era de se abrir e muito menos com leitores estranhos. A verdade é que este era um poeta. Não um poeta famoso. Um poeta que escrevia sobretudo pelo prazer de escrever. De si para si.

Abdul, para facilitar a coisa, subia já o caule de forma lenta causando arrepios de impaciência a qualquer minhoca que se cruzava por ele.

Alguns piolhos da fruta ainda jovens aproveitavam o rasto de nhanha deixado pelo nosso Abdul para deslizarem. Entretinham-se a fazerem provas de quem conseguia percorrer a maior distância com um único impulso. Outros aproveitavam o declive acentuado do caule para deslizarem até à raíz. Era uma espécie de cauleboard em que os mais talentosos conquistavam a atenção das piolhas.

A porta pintada de castanho seco abria-se e uma luz intensa amarelada descobria um espaço acolhedor. Abdul entrou. As paredes estavam forradas de alguns poemas que este se entretinha a catalogar com datas e titulos nem sempre muito aproximados ao conteúdo.

sexta-feira, setembro 17, 2004

Um minuto de silêncio em homenagem ao silêncio

Num dia de Outono de folhas douradas, a pena humida de tinta, de palavras caídas em folhas pesadas, sentiu a necessidade de se expressar, de riscar as palmas das mãos literárias e traçar novos rumos...sentiu a necessidade de esboçar novas vidas com os sentimentos estivais...

Nos dias em que tudo flui como se já existisse...como se o jogo não fosse o de criar frases mas o de descobrir as palavras, de sentidos...o jogo das escondidas...palavras perdidas entre linhas...sons pendurados em sinónimos, prontos a deixar-se cair como gotas, que incendeiam palcos verdes...prontas a florescer como flores em canteiros traçados pelas linhas das folhas outonais...

Nos dias de decifração de silêncios impregnados de mensagens, um dedo se uniu ao outro para serem dois na conversa...na conversa muda com a mesma pena que decifrou silêncios e fez florir os sons da verdade...

terça-feira, setembro 14, 2004

Sentidos in-dança

Ela acaricia leve e timidamente o chão ardente, que anseia vibrantemente pelo seu toque com as pontas doces dos seus pés...
o palco, que a abraça e a envolve, assume a febril comoção de um publico pintado de negro...
e as poucas luzes, que persistem em manter-se vivas, acotovelam-se e empurram-se para sentirem a superficie do seu corpo suave e melodioso...entretêm-se com os graciosos movimentos que este corpo compõe e perdem-se nos aromas de uma pele harmoniosa...

A música procura acompanhar os seus movimentos, demonstrando a ansiedade de um primeiro encontro, o tremor de uma primeira paixão...o platonismo de um frémito ingénuo, mas sentido...

mas ela, alheia à própria vida, desenha códigos de linguagem, mantendo os olhos cerrados...expressa com a vontade cega ideias longinquas, sem se aperceber do efeito hipnotizante dos seus passos...e dança...dança...dança como se o conceito acabasse de ser criado, inventado a cada passo por si dado...escrito no dicionário da vida, aos poucos, de forma suave mas incisiva...e dança como se as palavras de um qualquer dicionário fossem expressas em passos por ela dados...e dança escrevendo amor, absorta das letras que a compõem...

sábado, setembro 11, 2004

Despertar

Num dia brusco, esquecido pela luz, trespassado pelo momento breve e recortado da vida eu vi o veado negro no alto da colina. A lua, timidamente picotada e colada algures à moldura deste quadro, desenhava a imagem gélida de uma noite sem tempo. Desenhava o perfil congelado das imponentes hastes, que se erguiam do corpo imóvel retido pela memória.

Num dia brusco, de cenário fixamente melancolico, corrompido pela pouca luz derivada do meu pequeno quarto eu vi o veado negro que me observava. As hastes cresciam na escuridão criando-lhe o nome de luz. A melancolia ganhava veias de luz e o quadro perdia a homogeneidade limpa da sobriedade negra.

Num dia brusco, expurgado da amnésia de vida, esquecido da morte temporal, eu vi o veado ainda imóvel, ornamentado agora de luz. Observei as veias de vida saciadas de conhecimento e chamei-lhe....despertar.

quinta-feira, setembro 09, 2004

Exibes-me lâminas de paladares ornamentadas em clichés literários de amores fáceis, enquanto esperas o tacto do meu respirar aceso.
Atentas ao bifurcar das linguas que beijas em longas conversações, mantendo sempre esse teu sorriso fresco desses olhos...desses teus olhos sempre expressivos e colados ao sentimento...

E as palavras, que expiras em ansiedades pouco contidas, condecoram os ombros musicais e suspiram quadros baços, entendidos com a distância da verdade...
E, já lá ao longe, com passo curto pelo laço que une o bem e o mal, cuspo olhares furtivos de lavas frias e secas...sem o calor da proximidade da memória...sem o calor da forma distinta, perdida algures entre traços desmaiados...

Em traços lavados em sentidos ensaguentados de corações expostos em lojas de relojoeiros perdidos em tempos livres...
E a tartaruga, que nos erguia em longas veredas pela humanização, sente o peso da desilusão...o mesmo peso que os ombros condecorados acariciam sem se reberverar, como era seu costume...
E esses mesmos ombros insistem em expelir sons de musicas ciclicas em modelos facilitados pelas conclusões ficticias...pelas conclusões de uma história que nunca mostrou a mesma coragem dos olhares perdidos na palma da memória...

quinta-feira, agosto 12, 2004

Fim de um inicio

Dois relogios cumprimentam-se entre tique e taques, sacodindo ponteiros de segundos, que correm ritmados como a vida de duas gotas, que se precipitam do alpendre velho para uma gravidade apuradamente cruel...

E a morte sopra a vida, vista pela transparência de uma costela, que gerou uma humanidade....
Um ponteiro gerou uma história, e um sentimento um corropio de vida e morte congelado no relógio, que ainda cumprimenta o outro...

O tempo passeia o espaço, dando-lhe as cores da evolução...o infinito embala o tempo, dando-lhe um espaço para se retratar...E a humanidade procura a costela, a genesis de um tempo num espaço há muito perdido...perdido algures na queda de duas gotas esquecidas...

sexta-feira, junho 04, 2004

Confronto

O cão, animado com o seu próprio som, uivava elegias proféticas sobre ossos enterrados...
Uivava de alegria, de ventre peludo, robusto e orgulhoso da caça feliz de dias de labuta recompensadas. De quando em vez, sacodia os toscos pelos com a desajeitada encardida pata...

Os troféus, esses, levava-os ainda visiveis no focinho, suculentemente ornamentado...
A lingua saciada cambaleava entre dentes e a parte do focinho ainda recheado da mescla de terra ardente e de comida teimosa em ser digerida...

O bafo quente contrastava com o frio da noite e desenhava humidade no ar. A lua era o abajur perfeito que condensava e vibrava a luz da lâmpada, que o corpo hirto do cão iluminado exalava...a noite era a serva de um mestre altivo e seguro...um mestre indiferente às ameaças do mundo hostil que o rodeava...

Entre uivos, lambidelas e estouvados orgulhos os passos pesados e descuidados da criatura, que se aproximava, foram descuidadamente ignorados pelo mestre da luz...

Em poucos segundos a proximidade tornou-se demasiada para não ser reparada...o incauto cão pouco tinha a fazer para reparar a sua frágil percepção...os dentes da criatura assumiam o grotesco e ela a qualidade de monstro...o seu rosnar calava a noite...a sua furia escurecia a lua...os seus olhos faziam esquecer o orgulho...

Quase sem pensar correu...fugiu sem escolher direcção...e enquanto fugia mantinha na retina o rosto demoniaco da criatura...os olhos de fogo, as patas de chumbo, os dentes de morte...e, mesmo assim, aos poucos e poucos crescia dentro dele o sentimento que podia enfrentar esse monstro, se tal fosse necessário...podia simplesmente parar, virar-se, e mostrar que a sua presença também inspirava temor...mas não...ele corria mais rápido...era mais lesto a movimentar-se...e por isso não hesitava em correr e em evitar o confronto...

E fugia, ganhando distância...fugia ganhando confiança....fugia a pensar se conseguiria debater-se com tal criatura...e entre cipestres queimados, por cima de folhas derretidas em fogo, debaixo de um céu vermelho de sangue deu de caras com uma outra criatura...em tudo semelhante à que ainda a perseguia...em tudo semelhante mas mais tenebrosa, mais vil, mais demoniaca e mais rapida e lesta a movimentar-se...

O pânico afogou-o de tal forma que mal conseguia respirar...parou...congelou...olhou para trás onde a criatura, que o seguia, perdia o estatuto de monstro e assumia o estatuto de antiga esperança...
Essa mesma criatura parava também...hesitava, atenta à reacção do cão...cercado...

O actual monstro sorria e aproximava-se lentamente, demonstrando confiança...e o cão pensava no que fazer....e, arrependido de anteriores decisões, sentou-se e esperou...

segunda-feira, maio 24, 2004

O conto do pêlo tresmalhado e do velho orgulhoso

O bigode, caiado de branco, de quando em quando, era penteado pelo pente atento. Os pêlos tresmalhados eram calma e organizadamente domados, segundo a vontade do seu mestre. Este mais não era do que um velho orgulhoso, que passeava e exibia o seu farto bigode aos demais velhos, de devaneios capilares timidamente demonstrados. Um certo dia, ou incerto porque não consta data, enquanto o pente se passeava ditatorialmente sobre os pêlos vergados pela soberania deste, eis que o titulo do conto ganhou alento...

O pêlo, de seu nome capilar, ausentou-se das suas funções de vassalagem e de voz grossa, como se este a tivesse, gritou bem alto o grito pintado por Munch e expelido em ipiranga. E gritou, pela recusa de aceitação de posição das massas, pela recusa ao conformismo, pela recusa ao trabalho não assalariado. O velho, excusando-se a ouvir, continuando a bulir e surdo no sentir, arranhava os pêlos doridos pela recusa. Os pêlos doridos, mas atentos ao colega capilar, entre receio e orgulho hesitavam em que decisão tomar...

Lentamente se eriçaram também, lentamente passaram palavra aos demais, lentamente contagiaram as vontades dos que ainda se escondiam entre os sulcos lavados da face velha do velho teimoso: os da guerrilha já quase esquecida. E, de todos os sulcos e de todos as reentrâncias, um movimento sem precedentes emergiu. A batalha dos pêlos pelo territorio perdido...

O velho, que já não sentia a pele nua, que havia sido invadida pelos pêlos lutadores, esbaforidamente quebrava as portas e corria para o exterior, mas a luz já não via, os olhares de admiração dos outros velhos já não os sentia, e nem gritar podia. Perdido, algures no chão molhado da chuva, que entretanto caía, começou a chorar. Cada lágrima abria espaço entre os pêlos, traçava um caminho, como os pioneiros haviam traçado caminhos rumo às suas futuras terras, e aí ele entendeu. E sorriu, entre os rios fluentes de lágrimas, que lhe desenhavam os contornos da face feliz.

domingo, maio 23, 2004

Sabores

Entre novidades perdidas, no prato sujo e fundo, os talheres da descoberta perscrutavam as ideias...
procuravam sabores ocultos, entre verdades relatadas pelas velhas mãos de cozinheiros sábios...
Remexiam segredos nunca saboreados, remexiam aromas ocultos, remexiam paladares exoticamente fabricados...

Entre novidades perdidas, no prato sujo e fundo, os talheres da descoberta elevavam ideias, tornando-as reais com o simples toque...
Tornavam-nas reais com o toque da lingua, outrora muda, agora fluente em desvendar os segredos passados pelas velhas mãos...
e os segredos do ontém, desfeitos no hoje, ganhavam a esperança do amanhã...
ganhavam o alento de que as descobertas mais não fizeram do que traçar novas rotas, novos caminhos por percorrer...

Entre novidades perdidas, no prato sujo e fundo, os talheres da descoberta continuavam com a forma do ponto de interrogação, agora mais colorida e mais luminosa...mas sempre na eterna descoberta de novos sabores...

domingo, maio 16, 2004

Atacadores

Mãos singelas giram delicadamente os atacadoes soltos, dos sapatos sujos, do pequeno rapaz...
Olhos trôpegos brilham de alegria esquecida, e atentam aos movimentos dos dedos que, carinhosamente, manuseiam os atacadores...
Imagens saudosas dificultam os olhos húmidos de tecer laços firmes...desenham histórias passadas em atacadores apertados...tecem memórias em nós dados...
Um sorriso esboça-se, por entre duas lágrimas frias, que traçam os contornos de uma face desenhada com sofrimento, lívida de amor...Um sorriso, que se transforma rapidamente em temor...e um soluçar, que revela um forte ardor...
O rapaz observa-a...admirado...confuso com a sua reacção...
Atento à voz da sua mãe, que o chama ao longe, corre na sua direcção...
Corre, olhando a mulher, uma última vez...
Ela, de joelhos, olha os seus dedos...os dedos de mãos singelas...de mãos, que antes apertavam os atacadores soltos de outros sapatos sujos...de outros sapatos sujos que não desenham mais memórias...

quarta-feira, abril 28, 2004

Nudez

Encolho-me perante bramidos sentidos, provindos de alguém que me conhece as entranhas...
a medo me escondo, com olhos brilhantes, de quem ousa ser encontrado por entre arbustos derretidos na escuridão...
através de um simples olhar, com olhos em chamas...de quem arde por dentro, expelindo e contagiando com o seu calor...
de quem tenta aquecer um ou outro sentimento...aqui e ali...

fecho imagens em mentes insanes e esqueço limites e barreiras finitas...
fecho imagens com folhos de cores inúteis que me desviam o olhar fútil...
fecho imagens e choro por me deixar levar...mais uma vez...por simples distrações sem alma...

desenho pequenos fôlegos nessas cores, como que para lhes dar profundidade e copio o teu retrato em folhos inúteis com estrelas de pequenos beijos teus e sopro finalmente por entre riscos e rabiscos de alma pura...

vejo a vida que se eleva sobre mim...desvendando mais sentimentos...e coro porque me sinto nu em mim...
nu face a ti...e o receio apodera-se do meu corpo que se remete ao pensamento de que talvez um dia me sinta confortável assim...
assim nu em mim para ti...

quarta-feira, abril 14, 2004

Cipestres em chamas

caminho, cambaleando por entre ciprestes em chamas...
toco as folhas em cinzas, que asfixiam a vida, que cobrem o chão...
estas dissolvem-se e pintam destinos negros na pele seca da palma da minha mão...

observo o negrume que se esboça também nos meus olhos...observo a morte que asfixia e pinta o chão que piso...
e, enquanto me perco na minha perdição, ouço-a...ouço-a sem a compreender...abraçando as árvores, que ardem, sem ela o compreender...

vejo-a entre chamas...com olhos que sorriem...olhos de esperança...olhos que brincam com as mãos sujas, que entretanto ergo para a tocar...e desconhecendo os seus destinos e designios sigo-a...

caminhamos de mãos dadas...desconfortáveis com o amor...inseguros com a perene sensação que os sentimentos assumem...mas mesmo assim felizes com o breve momento... felizes com a sensação de que a felicidade pode existir...mesmo que ardendo algures entre os cipestres...


sexta-feira, abril 09, 2004

Telas

alegres sons que provêm do silêncio das telas mudas que cantam...
que enchem a vida de cor...
crianças pintam, com as mãos coloridas...com as impressoes de quem calca a alma de uns, com os sentimentos perdidos de outros...
encontrados por vagabundos felizes, que se encontram a si proprios nas telas...
de crianças que continuam atentas...a pintar uma vida e outra...e outra...e talvez a minha e a tua...

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

arregaço a pele e descubro um coração oco...que ecoa solidão por entre gemidos de dor em luto...
que revela constelações de esperança...pequenas partículas de desejo, ainda latente...

olho-te sem olhos...com o simples reflexo do amor...e desprendo os elásticos da emoção que te prendem a mim...que te puxam aos poucos...por entre sorrisos mudos...por entre premonições de paz...

e, com a chave da comunhão, giro delicadamente a fechadura da entrega...giro e abro o teu coração...

e leio palavras do antes e do depois, porque as do durante são escritas pela pena húmida da paixão...

e as letras que trocamos...as palavras, que expelimos com a simples vivência a dois, são guardadas num cofre sempre aberto, cuja chave reside na união...na união do sentimento.
Segredos

Rumores de vozes entrincheirados na memória...
algures onde o velho segredo caminha, ainda lesto, por entre familiares tabus...
marcha, pé ante pé, lesto mas cuidadoso, evitando olhares reprovadores por acções nunca levadas a cabo...por acções sentidas intensamente...

O velho, o que procura as vozes, o que arrisca olhares, o que esquece a idade e o tempo, suspira pela continuidade da sua existência...
suspira pelo coração fraco que bate...que persiste em bater ao ritmo de uma paixão não esquecida...não negligenciada pelo olhar, ainda aceso com a chama do sentimento...

O velho, que definha e morre aos poucos, sorri o sorriso do segredo ao segredo que se esvai em morte pela vida...e os tabus, os que enchem a memória de cinzas, cultivam a decepção...cultivam a apatia...cultivam a resignação e rejubilam em dor por um amor esquecido...

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Morte

seguro os véus negros da sabedoria com os dedos longos do seu olhar...
estico os braços bem alto, para evitar as rugas do tempo...
mas o esforço é sempre breve...breve a sua vontade em me olhar...

limpo e limo os sentimentos crus...cozinho-os em tachos ardentes...
em fogueiras que consomem o ar que aviva a alma...
movo e giro o meu futuro e provo-o...o paladar da tristeza...o sabor da derrota...

junto as lágrimas da resignação para lhe acentuar o paladar...
e dou-lhe a provar...de sorriso largo...de olhos brilhantes...
a minha alma...

a mão que escorre as palavras lentas que um coração aceso ilumina...
a mão que se derrete sobre as palavras lestas que uma mente em bréu desenha...
a mão que um dia se ergueu para assassinar os espirítos turvos de passados longinquos...
a mão arrependida que geme ecos vibrantes de dor...
a mão agora decepada em vontade, em crença, em acção...
a mão perdida algures num coração agora escuro...observada por uma mente iluminada pela razão...

quarta-feira, janeiro 14, 2004

Sonhos Partilhados

Os meus olhos tocam e acariciam a tua pele nua, macia e clara como nuvens espremidas...
passeio-me pelas formas que a luz, absorta na tua beleza, vai desenhando...
e, como artista, que utiliza como único modelo os sentimentos, aprecio a harmonia e procuro rupturas, mas a procura é a própria ruptura do olhar...
e então desisto, e contemplo a parede cinza da minha sala de estar e o que vejo és tu...ainda tu...a sorrir !!
e o retribuir desse sorriso sai-me de forma natural, mas sem peso, e então coro e choro e logo viro a face, com medo, mas sem motivo porque me pegas pelos braços com cordéis de palavras tecidas em sonhos, que ambos partilhámos...
e fazes-me mover e ter-te nos braços e, então, tudo o resto desaparece em triviais viagens para um espaço limitado em ideias, finito em espírito...porque o que sobra é o infinito de sonhos por nós partilhados...
O sol e o seixo cor de púrpura

Lá ao fundo, as ondas comunicam por habilidosas formas desenhadas em espuma salgada, branca e aveludada…pela expressividade quase musical com que estas formas assumem no ponto mais elevado delas…e pela cadência trabalhada com que estas descem a pique contra a areia profunda…
São quase sempre monólogos sobre o sal que lhes dá a beleza, sobre a vida que arrastam, e que transportam nas suas longas e distantes viagens, sobre as suas esmeradas capacidades artísticas de moldarem as rochas, deixando para trás as suas eloquentes assinaturas...assinaturas em forma de declarações de amor ao vasto oceano, de que elas também fazem parte…

Entretanto, cá mais perto da praia, nos limites entre as orgulhosas ondas e a terra pintada de água, algumas delas irritam-se com a areia que lhes entra nos olhos…e, ao tentarem expelir esses grãos impertinentes, que as mantêm cegas, batem com violência contra rochas e contra os restantes grãos de areia...e, quanto mais forte batem, mais confusas são as palavras, mais caótica a cadência, mais difuso o sentido…
as ondas mais atrasadas assumem esta confusão, esta cegueira de sentidos, como uma declaração de guerra…uma disputa de território…uma prepotência que não estão dispostas a tolerar…uma tentativa de desferir um golpe profundo no seu orgulho...

Sentado, algures no pontão, observo as ondas gigantes, eriçadas, irritadas a debaterem-se com as pequenas partículas de areia…

Mais atrás, as demais ondas, feridas no seu orgulho, preparadas a mostrar o que valem, a quem lhes arruinou a calmaria daquele por do sol, assumem posições de ataque…entram em debandada contra as posições das primeiras…acotovelam-se e mostram-lhes do que são capazes…chicoteiam as rochas, arrastam enormes porções de areia consigo, libertam a espuma da raiva, gritam bem alto o quão poderosas conseguem ser…

O som de fúria e o movimento hostil destas entristece o sol, que se entretinha a observar delicadamente um pequeno seixo púrpura que lhe sorria…que lhe cantava canções de maresia, que lhe contava histórias de marés, que lhe segredava paixões entre correntes marítimas…

Um seixo, que atrevidamente se apaixonava pelo calor que o sol libertava…pela cor de um sol, que brilhando alto, corava com as canções, com as histórias, com os segredos partilhados…pelo seixo apaixonadamente contados…

A meio de uma canção de amor, entre um cavalo-marinho e um líquen dourado, as suas palavras foram arrancadas de forma violenta, o seu corpo usurpado, a sua música saqueada pelo som mais forte e pela fúria intempestiva de uma das ondas, que o arrastou consigo…que o engoliu e o conduziu para as entranhas de um oceano frio e escuro…longe do calor de um sol atento e luminoso…

O sol, não o encontrando, não sentindo o seu sorriso, não ouvindo a sua melodiosa voz, não sentindo mais a sua leve presença…decide fechar o véu, que o vai encobrindo, aos poucos…aos poucos, puxa o véu cinzento e negro, um véu coberto aqui e ali por réstias de algodão branco que teimosamente mantêm as formas das imagens apaixonadas das histórias do seixo cor de púrpura…e, embora o véu se feche quase por completo, continuamos a ver o sol…um sol triste, sozinho a abandonar aos poucos o local onde, outrora, um seixo e um sol falavam…

As nuvens, que assistiam ao romance e que se entretinham a esboçar as histórias, que ouviam, no céu azul, e que por isso haviam conquistado a amizade do sol, choram agora a sua despedida…choram violentamente…

Mas as ondas, absortas da carícia triste das nuvens e ainda enfunadas de orgulho, continuam no seu jogo mesquinho de posições...a mostrarem a todos e a ninguém a sua vaidade, a sua prepotência…alheadas da pouca luz…alheadas da escuridão que engole o céu…alheadas da destruição de sentimentos…

Até ao momento em que o cansaço se sobrepõe…e aos poucos se acalmam…e se esquecem da causa de tanta fúria…vencidas por si mesmas…acalmam como se nada se tivesse passado…felizes novamente brincam entre si…entre si e entre os demais elementos marinhos…

As gaivotas, tais ardinas da tristeza do dia anterior, aproximam-se para contar a todos a história de amor de um seixo cor de púrpura e de um sol que continua sempre a rodar, sobre uma esfera azul e verde, à procura do seu amor…
E será por todas ou por nenhuma razão que amor rima com dor...?

E será estranho quando as palavras seguem o sentido inverso dos sentidos?
E serei eu audaz quando me ergo e gemo monossílabos de dor quando o que deveria fazer seria...entre dentes e lençóis...expelir arrepios de amor?

E terei eu a coragem de assumir o inevitável destino de toda e qualquer volta no carrossel da vida? De compreender o determinismo implícito nas inexplicáveis acções que empreendo e que me causam insónias sofridas?

Ou deverei eu agir por cima de palavras, em palmas de mão lidas?
Poderei eu um dia usurpar a caneta que desenha a vida?
Poder tecer caminhos e emaranhados distorcendo a palavra desígnio?
Mudar conceitos...Torná-lo talvez em simples bebidas...
Ou em empresas falidas?
Ou ainda em feridas lambidas?
Conceitos e sons...
gemidos e latidos...
Misturem tudo e façam nutritivos batidos...

Desçam aos pés e instruam-nos a caminhar...
Subam aos cabelos e ensinem-nos a pentear...
Mantenham a meio e ensinem o corpo a amar...

Mas gritem bem alto e acreditem bem fundo...
Que por nenhuma razão amor rimará com dor!
Toco levemente pequenos sonhos com a ponta da esperança...
distraio-me com os ténues e atractivos sons que eles exalam...distraio-me com os aromas de paz que me aquecem a alma...e deixo-me conduzir puxado por braços longos...por braços manipuladores que me esboçam vontades...que me intitulam a existência...que me gravam passados, bem passados na memória...que me segredam futuros grandiosos...e que me fazem esquecer momentos presentes...

fecho os olhos aos poucos e, com o sorriso apagado, ilumino a estrada, que se desenha à minha frente...a estrada de um futuro, caminhada no presente...
por vales, vejo montanhas e por montanhas, vales de ideias...
montanhas de sentimentos, que se acumulam sem palavras...
vales de palavras sem sentimentos...
Lá em cima, um céu transparente, em decepções pesadas e amargas, brota pequenas flores perfeitas...
tão perfeitas como a ausência de vida, que se ergue lentamente à minha frente e me clama...me chama...me desafia novamente ao esquecimento...
com palavras, ainda doces, de lábios grossos e negros, que precipitam pequenas flores vermelhas...
pequenas flores que gravitam, dançando à volta da minha existência, da alma ainda aquecida pelo engano...anestesiada e cirurgicamente usurpada...
pequenas flores que, ao tocarem a minha pele nua, queimam a minha vontade...chupam a minha verdade...limpam a minha liberdade...
e as pétalas, agora partidas, desmembradas, dilaceradas...pintam o leito onde a minha alma jaz viva...algures perto dos sonhos.

sexta-feira, janeiro 09, 2004

Ecrã

O meu queixo ergue-se…os meus olhos procuram algo…algo escrito num ecrã cinzento…
Algo que me faça acreditar…algo que me inspire a viver…
Procuro em vão palavras de consolo…palavras de esperança…
De perdão…de motivação…de redenção…
Mas em vão olho…em vão sobrecarrego as pálpebras…a mais uma vez se erguerem…
Para dar espaço aos meus olhos…dar-lhes espaço para nada encontrarem…

Os olhos procuram, mas as lágrimas fecham as cortinas da esperança…
Cessam a busca e concentram-se na fonte…na escrita…
Mas quem escreve…quem ousa continuar…quem tece letras, palavras, frases de vida…sou eu…apenas eu…
e com estes dedos dormentes…feridos…calejados…que não ousam continuar a ter uso…que não ousam arriscar novas historias…
só me resta desligar o ecrã e…descansar…eternamente…
O peixe e a lua

Um dia, tentando alcançar o céu um peixe emergiu do lago cor de lua...
com o apoio das rãs douradas, que lhe construiram uma bolha suficientemente grande para as dimensoes do seu corpo e suficientemente forte para suportar o seu peso e a sua estrutura agressiva de escamas, ele foi capaz de levantar voo...de levitar por cima dos prados contíguos ao lago, e de ver os pássaros lilases a passarem rente à bolha com o objectivo de controlarem o rumo de seu voo...
a lua parecia cada vez mais próxima e o lago cada vez mais distante...e o chilrear dos passaros a única ligação que ele agora tinha com a realidade de outrora...mas os seus olhos sorriam cada vez mais porque os pequenos pormenores da sua lua eram-lhe familiares, apesar da descoberta...e aos poucos e poucos o silêncio surgiu como manta negra recheada aqui e ali por pequenos pontos luminosos...mas a sua mente fervilhava de ideias que cantavam à lua e os seus olhos transpiravam os sentimentos do seu coração...
...os sentimentos que nasceram num primeiro olhar e que evoluiram com um voo de
descobertas...
A colina e a Lua

uma colina ao longe...
consigo vê-la com alguma dificuldade, pela transparência do meu cortinado velho...
o livro, que tenho aberto encostado ao peito, enquanto o meu corpo preguiçoso se anicha no sofá confortável do meu quarto, protesta pelas palavras que não foram lidas...mas as minhas pálpebras desculpam-se com o cansaço, e os meus olhos com a necessidade de imaginar essas mesma palavras escritas numa colina algures...algures por detrás do cortinado...
lá fora, um mocho convida-me a dar o passo para o sonho...para o real imaginado...para as palavras escritas em livros de fantasia...e deixo-me levar aos poucos , contemplando uma lua que vai perdendo luz com o fechar dos meus olhos...
o som do uivo das árvores lá fora exprime essas mesmas palavras, que vou decifrando, enquanto me deixo transportar...
mais uma vez, abro os olhos contra a vontade das minhas pálpebras e consigo ver de novo a colina...mas agora dourada, e a lua...agora sem cor...uma lua que derramou todo o seu mel, tal qual recipiente, sobre uma colina sedenta de luz...
Arco-íris

Sombras pequenas de pedrinhas ainda mais pequenas. Páro e olho...e vejo-as moverem-se e escreverem letras no chão sem lhes tocarem....apenas com a tinta da sombra....tinta de ilusão.
Escrevem palavras quentes, e as folhas que acolhem de braços abertos tais palavras mudam de cor...e revestem-se do vestido do calor arregalando os olhos e, pela primeira vez, exprimem sentimentos com sons que atraiem o vento que dança com elas....
E as nuvens contemplam e, com a tristeza de nao poderem dançar também, e com a tristeza de não poderem receber tais palavras afectuosas das pedrinhas, derramam lágrimas....e o barulho de lágrimas e a tristeza patente pela cor das nuvens sufoca o arco-iris que, de forma paternalista, vem em seu auxilio, sem hesitar, demonstrando todas as suas cores luminosas de forma pura, distraindo-as e fazendo com que, como crianças, deixem de chorar...
Ambiente

Levantei-me.

Olhei em frente e, a custo, já que os meus olhos se recusavam a aceitar luz, consegui ver um enorme prado, com formas e cores incompletas, como se Deus, um dia, tivesse pegado nuns quantos lápis de cor e, a pensar que poucos humanos passassem por aquele espaço, tivesse apenas esboçado um cenário simples sem se preocupar com pormenores...
sem se preocupar com os detalhes normais com os quais nos habituámos...como os fios de erva que traçam o chão com a tinta do vento...como as rugas das árvores que contam as verdadeiras histórias aos nossos avôs...como a pequena espuma de água que lava o tapete de seixos...

aliás...depois da audácia de nos conceder subjectividade, melhor seria que nem tudo estivesse completo, para que pudessemos interpretar segundo a nossa maneira de ver a realidade, ou, ainda mais ousadamente, e porque não... conceder-nos a possibilidade de mudarmos o cenário conforme nos aprazasse...conforme a nossa imaginação nos estimulasse...

mas exagerámos e construimos destruição entre cenários idílicos que não podemos repor...ou poderíamos, se para isso houvesse motivação...

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